domingo, 16 de dezembro de 2012

Papai Noel Existe?


 - Pai...Papai Noel existe?
A pergunta, secamente formulada pelo filho na hora do jantar, foi como um soco certeiro na boca do estômago. O pai se engasgou, soltou o garfo, já na altura da boca, no prato. O barulho afiado da queda do talher sequer fez o filho piscar, ao contrário, ele manteve o olhar fixo no pai, de forma inquisitorial, ávido por colher a resposta a sua pergunta.
O pai perdeu o fôlego, a cor e o apetite, mas ainda assim enfiou uma garfada de macarronada na boca fingindo naturalidade. Recuparado o fôlego olhou friamente para o filho por cima dos óculos, e com o canto do olhar fitou a esposa, que, enquanto secava a louça, tratou logo de fingir não saber do sucedido, como quem diz “se vire”.
Não sabia como abordar a questão. Decidiu, então, por ganhar tempo e ordenou:  
- Filho, coma. Depois a gente conversa.
A refeição se seguiu no mais absoluto silêncio. As almôndegas, antes macias e saborosas, viraram pedras no estômago do pai. Já o filho não teve problemas em acabar de jantar, a comida estava boa e ainda haveria a sobremesa. O pai dispensou o pudim.
Findo o jantar a família se dirigiu à sala. O pai muito rapidamente ligou a televisão no canal de desenhos, mesmo sabendo que a hora já passara do horário estipulado para a TV. Sentou-se no sofá com um livro nas mãos. Tudo na tentativa de driblar a memória do filho, fazê-lo esquecer da pergunta. Foi em vão.
O filho, sentado ao lado do pai, se levantou, se dirigiu até a TV e a desligou. Voltou e, de pé, com sua altura de 8 anos, olhou novamente para o pai e disse-lhe:
- Pai, já jantamos. Podemos conversar.
Agora o pai perdeu a respiração. Ficou vermelho e começou a suar na já ampla testa. A mãe saiu da sala com a desculpa de trocar as fraldas do bebê. Ele ficou ali, sentado, acuado pelo filho e amordaçado pela maior de todas as dúvidas que já teve. “Conto ou não conto, eis a questão”.
Decidiu pela verdade. O problema é que o pai não era de rodeios e embromações. Era direto e objetivo, quase grosso. Mas não queria ferir o coração do filho com a verdade nua e crua. Precisaria prepará-lo para a grande descoberta da infância. Tentou de alguma forma ser um pouco ameno e começou a explicar coisas como o que era o espírito de Natal. Prosseguiu falando de lendas, estórias que os avós dos nossos avós contavam, e assim por diante. Mas ele não tinha muito jeito para esse falatório todo. Não é a toa que o filho logo o interrompeu fazendo-o restabelecer o foco:
- Paiêeeee..... fala logo: Papai Noel existe?
O pai calou. Engoliu seco, ajeitou os óculos sobre o nariz, pousou as mãos sobre as pernas e criando coragem disse:
- Sim.... e não!
- Sim e não? Como assim? Existe ou não?
Ele tentou resistir, Deus sabe, mas não adiantou. Decidiu por abrir o jogo:
- Tudo bem filho, Papai Noel não existe. É só uma representação do espírito de Natal.
O filho, aliviado, abre os braços na altura dos ombros e os solta com força nas pernas produzindo um estalo ao mesmo tempo em que grita:
- Arre.... até que enfim! Custava falar logo?
 O pai sem entender absolutamente nada não conseguiu deixar de perguntar:
- Você não está triste filho? Por saber que Papai Noel não existe?
O filho responde:
- Mais ou menos, pai. Mais ou menos!
O pai retruca:
- Como assim?
- Um pouco triste fiquei, mas queria mesmo saber se ele existia para saber para quem eu devo pedir um i-pad de presente. Agora sei que é pra você mesmo. Então pai, me dá um i-pad... com 3G?
A reação do pai foi um sentimento triplo: alívio por ver que o filho não sofria, surpresa por ver a ausência de desapontamento e por fim orgulho por perceber que o filho herdara a mesma objetividade, marca registrada sua.
Após todo aquele momento de stress, seguido por um alívio em razão do desfecho não trágico, concentrou-se apenas em contemplar o filho e percebeu ser ele o maior de todos os presentes da vida, mesmo sem a intervenção do Bom Velhinho.
Mas ainda assim o filho não ganhará o i-pad... ainda mais com 3G.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Primeiro Amor


As quatro anos de idade meu filho mais velho mudou de escola. Até está idade frequentava uma escola adorável, em outro bairro da cidade. Professoras dedicadas, ambiente agradável e uma coordenação impecável. Eu adorava a escola quase tanto quanto ele, pois ele realmente a amava.
Começou a frequentá-la com dois anos. Portanto, ficou lá por outros dois. Embora não pareça muito tempo, certamente muita coisa aconteceu em sua vida nesse curto período, e entre elas meu pequeno conheceu seu primeiro amor: uma doce menininha chamada Fernanda, a Nanda.
Era uma graça, claro que não tanto quanto ele, mas era formosinha. Seu amor pela garotinha era recíproco. Certa vez deu-lhe um anel de plástico de presente, parecido com aqueles que vinham em sacos de pipoca doce. Ela se encantou. Mulher gosta de joia! Ela não o tirou do dedo por mais ou menos duas semanas. Depois disso não sei bem o que aconteceu, pois não mais exibiu o apetrecho. Talvez o tenha engolido e nessa hipótese certamente a mãe não deve ter se interessado em resgatar o badulaque.
Em retribuição ao presente ela lhe deu um ioiô. O brinquedo também sumiu depois de um tempo. Não, meu filho não o engoliu, era muito grande para isso e especialmente para o passo seguinte. Era verde, do Ben 10. Ele ainda não conhecia o personagem, mas sabia precisamente quem o lhe dera, a doce Nanda, e isso o deixava muito feliz.
Findo o ano e as férias escolares de verão, iniciava-se a nova experiência de meu menino na outra escola. Estrearia no Colegião. Confesso que me surpreendi, pois adorou a escola nova, quase tanto quanto a antiga. Era grande, colorida, alegre.
Mas as lembranças do amor não abandonam facilmente um homem e, mesmo que eu lutasse para libertá-lo, as memórias de Fernanda persistiam incrustadas em seu ingênuo coração.
Já algumas semanas depois, voltávamos do Colegião e meu pequeno se mostrava alegre, radiante com os novos amigos e em especial com outra doce menina, Laura. Bem que minha mãe já dizia que nada nessa vida é insubstituível. Nisso Laura veio a calhar.
Animada pelo progresso sentimental de meu pequenino, certo dia, regressando da escola, tratei de perguntar-lhe, muito discretamente, sobre Laura. Os olhos brilhavam entusiasmo enquanto ele descrevia seus dotes e qualidades. Mas repentinamente, como em um arroubo de melancolia, seus olhos se apagaram, se acinzentaram. Estávamos no carro e pelo espelho retrovisor pareceu-me uma lágrima de tristeza a escorrer-lhe pelos olhos. Olhei melhor, quase bati o carro, mas percebi, para minha felicidade, que não passava de um pequeno feixe de luz em sua face.
Embora não chorasse, é certo que ele sentia falta da garota. Lentamente levantou a cabecinha fitando-me, de trás do carro, pelo espelho e desabafou:
- É mamãe, a Fernanda não mudou de escola. Que pena! Que pena que não deu tempo!
“Não deu tempo? Não deu tempo de que?”, pensei. Curiosa, verbalizei a pergunta e ele, para meu desespero, completou o desabafo anterior:
- Não deu tempo da gente se casar, mamãe!
Quase enfartei. Senti um formigamento no braço e uma trincada no peito. Meus olhos ficaram turvos e por uma fração de segundo percebi que em algum momento no futuro próximo  aquele serzinho não será mais meu. Será? Perguntei-me, afinal ainda só tem quatro anos.
Meio sem fôlego, engasgada pela saliva, procuro avidamente o que lhe dizer. Sim, pois o momento não poderia ficar sem uma resposta. Mas dizer o quê? Antes tivesse pensado mais e melhor, pois o calor e o desconforto daquele instante me fizeram atirar-lhe as seguintes palavras:
- Casar com a Fernanda pra quê? Você pode se casar com a mamãe!
“Nooossa, que idiota!”, pensei. Cheguei a corar diante do tamanho despautério. Ainda bem que ele ainda não percebe esse tipo reação. Contudo, há coisas que a vida trata de ensinar ela mesma, sem as intervenções nada inteligentes das mães. Com lucidez e serenidade meu filho retruca, quase me repreendendo:
- Mas mamãe, eu não posso me casar com você porque você já tem um papai!
Faz sentido. De fato já sou casada com o pai dele. Mas não desisto de meu filho. Jamais poderia perder a batalha para a minha primeira adversária, Fernanda. Lembro-me de Laura e ensino a meu filho, desta vez muito mais sabiamente, que a fila anda e digo-lhe:
- Meu amor, a Fernanda é passado.
Ele enfim concorda e assente dizendo:
- É ... ela já era.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Acampamento


A semana fora quente, colorida e ensolarada. A previsão do tempo não revelava o mesmo padrão para o iminente final de semana. De regra tal fato não chamaria nem de longe sua atenção, afinal mais de trinta anos vivendo na imprevisível Curitiba tornaram essa mudança de tempo comum. 
Mas nesse final  de semana em particular o tempo a atormentava. É que o marido decidira  levar o filho de 7 anos para acampar... no Pico do Marumbi.
Tentou dissuadi-lo da ideia que lhe parecia de jerico. Fora em vão. Ele revelou, para  surpresa da esposa, o improvável: podia ser mais teimoso que ela. Embora ele dissesse que a atitude não revelasse teimosia e sim determinação, era teimosia sim. E isso ela teimava em afirmar. 
Enfim chegou o sábado. Dia quente e abafado. O bafo do ar era como o sopro de Deus avisando a todos que a chuva viria. Pois sequer isso foi eficiente para afastar a tal “determinação” do marido. E, bem da verdade, sequer poderia ser diferente ante a excitação do menino, já cuidadosamente trajado de escoteiro, cantil a tiracolo, lanterna em punho e vários pacotes de guloseimas ordinariamente proibidas enfiadas na mochila. E assim foram os dois desbravadores rumo àquela que se apresentava como uma desastrosa aventura. 
Sempre achei que toda mãe fosse um pouco vidente, capaz de prever o futuro. Se estiver errada é porque talvez todas sejam meio bruxas, capazes de influenciar o futuro. Assim digo porque dito e feito. Choveu, e choveu muito. São Pedro resolvera fazer a faxina do ano! Ela não conseguia parar de pensar no entrevero que estaria sendo a aventura de seus homens. Já o marido não conseguia parar de tentar encontrar uma desculpa, justificativa ou qualquer outra coisa razoável para evitar o que seria o inevitável comentário: “eu te disse!” Ele não poderia dar o braço a torcer, tudo menos isso. Claro que não encontrou! A esposa venceria. 
Mas como disse, tudo menos vencido. Tratou de ter uma conversa de homem com o filho. Olhou-lhe nos olhos, e, esforçando-se para diferenciar a mentira da necessidade disse-lhe: 
- Filho, não vamos contar à mamães que choveu, tudo bem? Não precisa dizer nada, só não vamos contar que choveu! 
O filho, cúmplice nato do pai, pareceu entender e de imediato e com entusiasmo concordou, selando uma aliança que certamente traduziria no futuro a base de uma relação duradoura e recíproca de amor e devoção paternal. 
Mas algumas coisas na vida têm a perna curta.
Chegaram em casa sorrateiros e sem a esposa notar jogaram a roupa molhada no tanque na esperança velada de que somente a diarista no dia seguinte visse. Mas as mães têm olhos de águia. Enxergam tudo. Claro que ela viu a roupa entulhada, molhada e coberta de lama. Torceu o nariz, rodeou o filho, fez-lhe um carinho sobre os cabelos e dirigiu-lhe algumas perguntas inocentes, todas prontamente respondidas com detalhes minuciosos. Em seguida e repentinamente indagou-lhe, de forma firme mas despretensiosa: 
- Filho, choveu no acampamento? 
Ao contrário da reação do menino para o interrogatório anterior, para esta indagação não só ficou calado, como também imóvel. Com o pescoço duro, movia somente os olhos, tentando com o canto do olho avistar seu cúmplice, tal como reagiria o prisioneiro capturado que anseia pelo resgate improvável. Contudo, o resgate não veio!
O filho, sem outra alternativa, mas decidido a não entregar o aliado, rendeu-se a pergunta da mãe e, mostrando que a mentira tanto pode diferir como se confundir com a necessidade, disse-lhe:
- Não, mamãe, não choveu, a gente só ficou um pouco encharcado. 
Ela não pode conter o riso. Não só pela graça do momento que revelava a criatividade do pequeno e a lealdade para com o pai, mas também porque ao final ela poderia dizer ao marido: Eu te disse!
Minha amiga, não sei se foi assim, mas foi assim que vi acontecer!