quarta-feira, 24 de abril de 2024

O tatame e a mãe

Eram vários os espaços de luta naquele campeonato. Diferentes graduações se desafiavam nos tatames distribuídos no amplo espaço do ginásio. Cada dupla que se enfrentava, antes cumprimentava respeitosamente o adversário e mesmo antes disso, reverenciava o tatame.

Para os praticantes do Taekwondo, o espaço físico da prática da arte marcial é um lugar sagrado. É sobre ele que seus praticantes aprendem, crescem e comungam da experiência e dos valores que lhe são repassados por seus mestres. Não é, assim, um mero espaço de treino. É um ambiente em que o respeito deve imperar como lei, lembrando aos que sobre ele estão que disciplina e cortesia fazem parte do enfrentamento, o qual deve ser exercido com consciência e gratidão. É sobre o tatame que se forma a reflexão e autoavaliação decorrentes da arte marcial e que extrapolarão para a vida exterior, contribuindo com o aperfeiçoamento pessoal de cada um. É nele que se aprende sobre hierarquia e humildade, sobre força e resignação, sobre superação e controle.

Para subir no tatame os pés devem estar descalços. É um sinal de respeito. As impurezas do mundo terreno não devem contaminar sua superfície, dedicada tão somente a suportar o peso dos corpos envoltos nos Doboks. E quando não se é convidado, deve-se sempre pedir permissão. Para sair, reverencia-se o espaço mediante a curvatura do corpo, como expressão de agradecimento pela oportunidade de ali ter estado. Não é, enfim, um lugar qualquer, mas verdadeiro templo.

Essa tradição era sempre duramente observada nos campeonatos. Ninguém ousava adentrar o espaço sagrado da prática fora das regras que o regiam. E embora essas regras não fossem escritas, mesmo os não praticantes as compreendiam. Era como se fossem inerentes aquele lugar que somente era assim porque nele estavam os sagrados tatames.

Mas naquele dia a regra fora quebrada.

Tratava-se de uma luta entre dois jovens praticantes de aproximadamente sete anos de idade. Subiram sobre o solo sagrado, honraram os juízes e em seguida se cumprimentaram. Dentro do peculiar respeito e cortesia, que somente os praticantes das artes marciais compreendem, iniciaram-se os chutes e pontapés. Verdadeira poesia se desenhava enquanto um batia e o outro apanhava.

Contudo, às vezes, se não na maioria delas, há situações em que um bate mais que o outro. E aí, alguém sempre acaba apanhando mais. É dizer, a reciprocidade da pancadaria não se encontra em equilíbrio. Os praticantes entendem a dinâmica e compreendem que o sofrimento da luta faz parte do processo de amadurecimento do lutador. Mas essa compreensão não é suscetível à percepção de qualquer um, especialmente dos não iniciados.

E foi justamente uma mãe, aparentemente não iniciada nos meandros dessa arte marcial, quem infringiu as regras que regem a superfície sagrada. Era a mãe de um dos pequenos lutadores de sete anos. Mais precisamente, era a mãe do jovem que mais apanhava.

Ignorando o respeito que pairava no ar, transpôs os muros invisíveis que separavam o filho do mundo exterior e atirou-se sobre o tatame. Sem ser convidada. Sem pedir permissão. Sem descalçar os sapatos. De salto alto.

Naquele momento, foi como se o tempo houvesse congelado. Todos, imóveis, fixaram o olhar indignado na mãe desavisada que em seus saltos altos feria o solo venerado. As crianças, mais experientes que ela, gritavam “Sai, sai!”. Mas ela estava firme em seu propósito. Contestava os juízes e o resultado da luta.

Alguns tentaram, embora em vão, afastá-la daquele espaço. Ela se esquivava com tal desenvoltura que até os Faixas Pretas agiam com apreensão. Afinal, é da sabença de todos que nada é mais poderoso do que a fúria de uma mãe sedenta pela justiça do filho.

E embora o filho, no ápice da maturidade de seus sete anos, já soubesse que a luta era mais do que sobre ganhar ou perder, esse discernimento escapava à compreensão da mãe. Queria apenas ver o filho vingado a fim de que a justiça fosse restabelecida. E para alcançar esse objetivo, parecia que avançaria inclusive sobre os juízes, que, com cautela, recuaram alguns passos se afastando daquela nova adversária.

Não vou dizer que assisti a cena apenas com indignação. De certa forma me identifiquei com aquela reação bélica maternal. Mãe nenhuma gosta de ver o filho apanhando. Me vi nos seus sentimentos e em parte sofri com ela. Na verdade, era uma mistura de sentimentos: um pouco de indignação, um pouco de sofrimento e um pouco de vergonha.

Quanto à vergonha, ela se manifestava de duas formas. A chamada vergonha alheia, quando na impossibilidade de alguém se constranger, tomamos em solidariedade para nós essa missão. De outro lado, sentia uma vergonha que era própria e secreta. Secreta porque não ousaria revelá-la. Isto porque no fundo do meu âmago eu sabia que aquela mãe poderia ser eu. Talvez a única diferença que nos apartasse é que eu, iniciada que sou na arte marcial, sabia que invadir a área da luta significaria romper com os valores do Taekwondo, seria desrespeitar meus mestres, seria ficar conhecida como a mãe que invadiu o ringue e ainda, correria o risco de levar uns bons pontapés educativos de meus próprios filhos, mas sempre sobre o tatame.

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